O caçador e sua caça
Gotas escorriam vagarosamente
pelo meu copo de chopp, que já se encontrava pela metade, quando um barulho
atraiu a minha atenção para um canto do bar.
Uma mulher estava se desculpando,
pelo menos era o que parecia com a sua fala enrolada. Devia ter derrubado algo
no estado em que se encontrava.
Voltei minha atenção novamente
para o meu copo e bebi um gole generoso e refrescante. Duas noites depois eu me
encontrava sentado no mesmo banco, olhando para um copo de chopp muito parecido.
Malditas noites quentes.
Dei uma olhada geral no bar.
Estava razoavelmente vazio, já era bem tarde da noite. O tipo de horário que as
pessoas não se preocupam mais uma com as outras e ninguém faz perguntas.
Uma mulher cambaleou até a porta.
Reconheci seu cabelo loiro curto e as roupas surradas. Ela esbarrou em uma mesa
onde um cara bebia só e depois de pedidos de desculpa confusos, ele levantou e
deixou o bar com ela.
Tento recordar se ela saiu
acompanhada na outra noite também. Não consigo. Acho curioso.
*
Passei pela porta com ele
segurando o meu braço, me ajudando a andar. Disse que me daria uma carona até
em casa. Eu conhecia esse tipo de carona, bem demais até.
A aliança dourada na sua mão
esquerda e a bebedeira até de madrugada denunciava que seu casamento não ia
bem. Ou era só um desses caras que enche a cara depois chega em casa e espanca
a mulher e os filhos. Mais um tipo de escória da sociedade.
Abriu a porta do passageiro para
mim com um floreio, deu a volta, sentou no banco do motorista e ligou o carro.
— Para onde?
— Pode me deixar
em um ponto de ônibus que eu consigo chegar em casa sozinha.
— Que isso! É
claro que não, você está incapacitada de voltar sozinha. Algo ruim poderia
acontecer.
— Pega a avenida
Rochosa em direção ao shopping, vira à direita no Banco do Brasil, umas dez
quadras para a frente, você vira à esquerda e anda mais uns três quarteirões.
— Ali perto do
pasto?
— Isso mesmo.
— Tenho um
conhecido que mora por aquelas bandas, já sei onde é.
Durante o percurso ele perguntou
a minha idade, meu estado civil, meu emprego, se eu costumava ir sempre naquele
bar. Disse que mulher boa era mulher que aguentava bebida, que não podia sair
tropeçando assim como eu não, que isso mostrava como eu era fraca e que homem
nenhum me daria valor. Dava para adubar um quintal com o estrume que saia da
boca dele.
E exatamente como eu esperava,
ele virou à direita, em direção ao pasto, em vez de virar à esquerda, no
endereço que dei. Ele andou alguns quarteirões em silêncio, e de repente, estacionou
o carro.
— Aqui não é a
minha casa. Por que você parou?
— Vamos lá, isso
não era o que você queria? Não foi por isso que aceitou a minha carona?
— O quê? Não! Eu
pedi para você me deixar no ponto de ônibus, lembra?
Eu gostava de dar uma chance para
eles mudarem de ideia. E eles nunca me decepcionavam.
— Eu sei que isso
era só joguinho seu. Agora vem aqui, sua gostosa, vou te pegar do jeito que
você gosta.
Minha mão estava no bolso da
jaqueta desde que entrei no carro, esperando pacientemente.
Assim que ele avançou para cima de
mim com a mão na direção das minhas pernas, meu braço voou rápido na direção do
seu pescoço e o teaser brilhou azul
na escuridão. Ele soltou um gemido e caiu para frente.
Olhei em volta e não havia
ninguém lá fora. Nenhuma alma viva para testemunhar. Aquele era meu momento de
prazer. Abri minha bolsa, guardei o teaser,
coloquei as luvas de látex e sentei ele direito no banco.
Por que eles acham que somos
presas fáceis? Deveriam parar de nos tratar como o sexo frágil ou de nos ver
como um maldito pedaço de carne. Essa escória me fazia vomitar.
Peguei meu canivete e iniciei meu
trabalho.
*
A mulher não apareceu nos dias
seguintes, mas finalmente depois de duas semanas ela estava sentada, quase
invisível, no mesmo canto do bar. Era a mesma roupa das outras vezes?
Ela parecia uma bêbada qualquer,
dessas que você oferece para levar para casa com medo dela apagar em um lugar
qualquer na rua. Mas seus olhos vibravam, sempre de olho na multidão.
Até troquei de lugar para poder
observá-la mais discretamente. E, novamente, já era de madrugada quando levantou de sua mesa e esbarrou em um homem em pé, mas ele não foi embora com
ela. Ele apenas a xingou e andou para
perto do balcão. Ela saiu sozinha dessa vez.
E como era de se esperar, lá
estávamos nós dois na noite seguinte. Dois simples frequentadores do mesmo bar.
Por baixo do cabelo bagunçado e
das roupas amassadas, parecia ser uma mulher bonita. Era uma pena ser mais uma
bêbada inveterada.
Pedi duas bebidas e sentei em sua
mesa.
— Poderia me
acompanhar nesse chopp? – coloquei um dos copos na sua frente.
Ela olhou diretamente nos meus
olhos, séria e com um brilho forte no olhar. Havia algo nela, uma sensação completamente
diferente da mulher que saía tropeçando em tudo.
— Obrigada. –
respondeu.
Suas mãos delicadas pegaram o
copo com graciosidade e ela tomou tudo em um gole só. Devolveu o copo à mesa,
levantou e foi embora em silêncio, com uma visível irritação.
Que personalidade! Seu perfume
intenso e agradável permanecia no ar. E cada vez mais eu ficava curioso.
Como alguém que parecia quase uma
moradora de rua poderia ter mãos tão bonitas e unhas feitas?
Uma vez alguém me disse que o
diabo está nos detalhes.
*
Saí batendo a porta do bar.
Faziam duas semanas desde a última caçada e as últimas noites foram nada mais
que fiascos. Ontem eu tinha certeza que a vítima era perfeita e não me
recusaria, mas errei feio. E hoje um cara qualquer estragou a minha invisibilidade
muito cedo, e eu não podia arriscar dele prestar atenção em mim a noite toda.
Como se já não estivesse ruim o
suficiente com as notícias nos jornais sobre os meus assassinatos.
Era mais um dia de mãos vazias,
de deixar esses babacas aproveitadores andarem livres praticando o mal. Mas o
meu dia chegaria novamente. E seria em breve.
*
Passei alguns dias sem ir ao bar,
mas quando retornei, lá estava ela. Tentei ser um observador mais cuidadoso e
juntei várias informações importantes.
Não havia sequer uma câmera de
segurança no bar todo, ela sempre chegava quando estava lotado e nos dias vazios nem aparecia. Suas roupas
tinham um aspecto terrível, mas seus sapatos eram novos.
E o mais interessante, permanecia
a noite inteira com apenas um copo de uísque. Ou seja, ela nunca estava
realmente bêbada e não era pobre para gastar com esse tipo de bebida.
Então o que a trazia a esse bar fedorento e caindo aos
pedaços noite após noite?
Observando-a atentamente pude
notar como permanecia parada durante horas, apenas observando. Seus olhos vivos
analisavam com calma cada alma viva.
Ela não vinha pela bebida, mas
sim pela caça. As coisas estavam se tornando interessante. Cada vez mais eu me
sentia atraído pela situação toda. Pelo poder e controle que ela demonstrava. E
eu queria mais.
Era de madrugada quando ela
levantou. E como alguma das outras noites, um homem a acompanhou. Ele estava
visivelmente alcoolizado. Após passarem pela porta, fui atrás deles.
Já estavam quase chegando perto
de uma caminhonete quando ele se jogou em cima dela falando obscenidades. Os
dois caíram no chão e ela sequer gritou por ajuda. Eles se debateram por poucos
segundos até ele soltar um gemido e rolar para o lado.
Eu me escondi atrás de alguns
carros estacionados, o coração acelerado e a adrenalina correndo loucamente pelo
meu corpo. Ela levantou e apertou algo na mão que brilhou e emitiu um barulho de
estática. Um teaser?
Seu cabelo pendia de uma forma
estranha e revelou longos cabelos negros por baixo de uma peruca. Assisti-a
tentar colocar o corpo desacordado dentro da caminhonete, mas o proprietário
era pesado demais para ela.
Ela olhou indecisa para ele por
alguns instantes e foi embora. O que quer que quisesse fazer, não havia ido
conforme seus planos. Aquela sensação de espreitar a caça era algo viciante. E
agora era a minha vez de ir atrás da caçadora. De demonstrar a minha
capacidade.
A noite seguinte seria perfeita.
Já estava nesse jogo a algum tempo e sentia que a conhecia bem o suficiente.
Claro, não sabia seus motivos para fazer o que fazia, mas não me importava. Eu
queria a mesma experiência.
Esperei pacientemente as horas
passarem, e quando eram quase três da manhã, andei esbarrando nas pessoas e
quando ela se levantou, esbarrei nela também, derrubando minha bebida na sua
roupa. Seu hálito cheirava a álcool.
Desculpei-me pelo ocorrido do
jeito mais imbecil possível. Abaixei
para pegar sua jaqueta e vi que o teaser rolou para baixo da mesa. Enquanto
alguém oferecia guardanapos para ela se limpar, coloquei-o no meu bolso.
Ofereci uma carona como desculpa
e ela aceitou. Entramos no meu carro e dirigi até uma estrada vazia. Encostei o
carro e olhei para ela. Parecia tranquila, como se já esperasse algo do tipo.
Vi sua mão procurar algo na jaqueta. Algo que estava agora na minha própria
mão.
— Sabe, eu venho
te observando há algum tempo e devo dizer que nunca me senti tão empolgado
assim antes.
Ela me olhou e pela primeira vez
vi uma fragilidade verdadeira, uma expressão de medo. Eu ganhei. Encurralei
minha caça.
— É isso que está
procurando? – mostrei o teaser.
Tivemos uma pequena disputa de
força pela arma, mas ela era mais fraca, e sem eu estar bêbado ou sem o teaser, não tinha nenhuma chance real contra
mim.
Acertei-a na barriga e ela
desmaiou.
Levei-a para minha casa. Haveria
privacidade o suficiente para eu poder lidar com a bagunça que planejei fazer.
*
Acordei amarrada em uma cadeira,
amordaçada e indefesa em um cômodo escuro aleatório.
Tentei me soltar das amarras e,
de repente, a luz se acendeu. Eu estava em uma garagem fechada e com um
plástico enorme esticado no chão embaixo de mim. Aquilo era um péssimo sinal.
— Olá. – uma voz masculina soou e
foquei em um homem encostado perto da porta. – Antes de começar, gostaria de
agradecer por ter me mostrado um potencial que eu desconhecia que tinha. Claro,
eu sabia que tinha vários pensamentos incomuns e sádicos, mas colocar em
prática é completamente diferente!
Desespero percorreu o meu corpo.
As minhas vítimas mereciam o que recebiam de mim, mas tudo o que eu fiz foi
tentar melhor o mundo. Eu não mereço isso.
Observei em terror quando ele
pegou um cutelo da mesa e veio na minha direção.
*
Alguns dias depois, sentado
sozinho à mesa, degustando a lasanha totalmente caseira e um bom uísque, sorri
satisfeito comigo mesmo. Brindei o ar e completei:
— Obrigado!