quarta-feira, 23 de agosto de 2017

O caçador e sua caça

O caçador e sua caça

Gotas escorriam vagarosamente pelo meu copo de chopp, que já se encontrava pela metade, quando um barulho atraiu a minha atenção para um canto do bar.
Uma mulher estava se desculpando, pelo menos era o que parecia com a sua fala enrolada. Devia ter derrubado algo no estado em que se encontrava.
Voltei minha atenção novamente para o meu copo e bebi um gole generoso e refrescante. Duas noites depois eu me encontrava sentado no mesmo banco, olhando para um copo de chopp muito parecido. Malditas noites quentes.
Dei uma olhada geral no bar. Estava razoavelmente vazio, já era bem tarde da noite. O tipo de horário que as pessoas não se preocupam mais uma com as outras e ninguém faz perguntas.
Uma mulher cambaleou até a porta. Reconheci seu cabelo loiro curto e as roupas surradas. Ela esbarrou em uma mesa onde um cara bebia só e depois de pedidos de desculpa confusos, ele levantou e deixou o bar com ela.
Tento recordar se ela saiu acompanhada na outra noite também. Não consigo. Acho curioso.

*
Passei pela porta com ele segurando o meu braço, me ajudando a andar. Disse que me daria uma carona até em casa. Eu conhecia esse tipo de carona, bem demais até.
A aliança dourada na sua mão esquerda e a bebedeira até de madrugada denunciava que seu casamento não ia bem. Ou era só um desses caras que enche a cara depois chega em casa e espanca a mulher e os filhos. Mais um tipo de escória da sociedade.
Abriu a porta do passageiro para mim com um floreio, deu a volta, sentou no banco do motorista e ligou o carro.
Para onde?
Pode me deixar em um ponto de ônibus que eu consigo chegar em casa sozinha.
Que isso! É claro que não, você está incapacitada de voltar sozinha. Algo ruim poderia acontecer.
Pega a avenida Rochosa em direção ao shopping, vira à direita no Banco do Brasil, umas dez quadras para a frente, você vira à esquerda e anda mais uns três quarteirões.
Ali perto do pasto?
Isso mesmo.
Tenho um conhecido que mora por aquelas bandas, já sei onde é.
Durante o percurso ele perguntou a minha idade, meu estado civil, meu emprego, se eu costumava ir sempre naquele bar. Disse que mulher boa era mulher que aguentava bebida, que não podia sair tropeçando assim como eu não, que isso mostrava como eu era fraca e que homem nenhum me daria valor. Dava para adubar um quintal com o estrume que saia da boca dele.
E exatamente como eu esperava, ele virou à direita, em direção ao pasto, em vez de virar à esquerda, no endereço que dei. Ele andou alguns quarteirões em silêncio, e de repente, estacionou o carro.
Aqui não é a minha casa. Por que você parou?
Vamos lá, isso não era o que você queria? Não foi por isso que aceitou a minha carona?
O quê? Não! Eu pedi para você me deixar no ponto de ônibus, lembra?
Eu gostava de dar uma chance para eles mudarem de ideia. E eles nunca me decepcionavam.
Eu sei que isso era só joguinho seu. Agora vem aqui, sua gostosa, vou te pegar do jeito que você gosta.
Minha mão estava no bolso da jaqueta desde que entrei no carro, esperando pacientemente.
Assim que ele avançou para cima de mim com a mão na direção das minhas pernas, meu braço voou rápido na direção do seu pescoço e o teaser brilhou azul na escuridão. Ele soltou um gemido e caiu para frente.
Olhei em volta e não havia ninguém lá fora. Nenhuma alma viva para testemunhar. Aquele era meu momento de prazer. Abri minha bolsa, guardei o teaser, coloquei as luvas de látex e sentei ele direito no banco.
Por que eles acham que somos presas fáceis? Deveriam parar de nos tratar como o sexo frágil ou de nos ver como um maldito pedaço de carne. Essa escória me fazia vomitar.
Peguei meu canivete e iniciei meu trabalho.

*
A mulher não apareceu nos dias seguintes, mas finalmente depois de duas semanas ela estava sentada, quase invisível, no mesmo canto do bar. Era a mesma roupa das outras vezes?
Ela parecia uma bêbada qualquer, dessas que você oferece para levar para casa com medo dela apagar em um lugar qualquer na rua. Mas seus olhos vibravam, sempre de olho na multidão.
Até troquei de lugar para poder observá-la mais discretamente. E, novamente, já era de madrugada quando levantou de sua mesa e esbarrou em um homem em pé, mas ele não foi embora com ela. Ele apenas a  xingou e andou para perto do balcão. Ela saiu sozinha dessa vez.
E como era de se esperar, lá estávamos nós dois na noite seguinte. Dois simples frequentadores do mesmo bar.
Por baixo do cabelo bagunçado e das roupas amassadas, parecia ser uma mulher bonita. Era uma pena ser mais uma bêbada inveterada.
Pedi duas bebidas e sentei em sua mesa.
Poderia me acompanhar nesse chopp? – coloquei um dos copos na sua frente.
Ela olhou diretamente nos meus olhos, séria e com um brilho forte no olhar. Havia algo nela, uma sensação completamente diferente da mulher que saía tropeçando em tudo.
Obrigada. – respondeu.
Suas mãos delicadas pegaram o copo com graciosidade e ela tomou tudo em um gole só. Devolveu o copo à mesa, levantou e foi embora em silêncio, com uma visível irritação.
Que personalidade! Seu perfume intenso e agradável permanecia no ar. E cada vez mais eu ficava curioso.
Como alguém que parecia quase uma moradora de rua poderia ter mãos tão bonitas e unhas feitas?
Uma vez alguém me disse que o diabo está nos detalhes.

*
Saí batendo a porta do bar. Faziam duas semanas desde a última caçada e as últimas noites foram nada mais que fiascos. Ontem eu tinha certeza que a vítima era perfeita e não me recusaria, mas errei feio. E hoje um cara qualquer estragou a minha invisibilidade muito cedo, e eu não podia arriscar dele prestar atenção em mim a noite toda.
Como se já não estivesse ruim o suficiente com as notícias nos jornais sobre os meus assassinatos.
Era mais um dia de mãos vazias, de deixar esses babacas aproveitadores andarem livres praticando o mal. Mas o meu dia chegaria novamente. E seria em breve.

*
Passei alguns dias sem ir ao bar, mas quando retornei, lá estava ela. Tentei ser um observador mais cuidadoso e juntei várias informações importantes.
Não havia sequer uma câmera de segurança no bar todo, ela sempre chegava quando estava lotado e nos dias vazios nem aparecia. Suas roupas tinham um aspecto terrível, mas seus sapatos eram novos.
E o mais interessante, permanecia a noite inteira com apenas um copo de uísque. Ou seja, ela nunca estava realmente bêbada e não era pobre para gastar com esse tipo de bebida.
Então o que a trazia a esse bar fedorento e caindo aos pedaços noite após noite?
Observando-a atentamente pude notar como permanecia parada durante horas, apenas observando. Seus olhos vivos analisavam com calma cada alma viva.
Ela não vinha pela bebida, mas sim pela caça. As coisas estavam se tornando interessante. Cada vez mais eu me sentia atraído pela situação toda. Pelo poder e controle que ela demonstrava. E eu queria mais.
Era de madrugada quando ela levantou. E como alguma das outras noites, um homem a acompanhou. Ele estava visivelmente alcoolizado. Após passarem pela porta, fui atrás deles.
Já estavam quase chegando perto de uma caminhonete quando ele se jogou em cima dela falando obscenidades. Os dois caíram no chão e ela sequer gritou por ajuda. Eles se debateram por poucos segundos até ele soltar um gemido e rolar para o lado.
Eu me escondi atrás de alguns carros estacionados, o coração acelerado e a adrenalina correndo loucamente pelo meu corpo. Ela levantou e apertou algo na mão que brilhou e emitiu um barulho de estática. Um teaser?
Seu cabelo pendia de uma forma estranha e revelou longos cabelos negros por baixo de uma peruca. Assisti-a tentar colocar o corpo desacordado dentro da caminhonete, mas o proprietário era pesado demais para ela.
Ela olhou indecisa para ele por alguns instantes e foi embora. O que quer que quisesse fazer, não havia ido conforme seus planos. Aquela sensação de espreitar a caça era algo viciante. E agora era a minha vez de ir atrás da caçadora. De demonstrar a minha capacidade.
A noite seguinte seria perfeita. Já estava nesse jogo a algum tempo e sentia que a conhecia bem o suficiente. Claro, não sabia seus motivos para fazer o que fazia, mas não me importava. Eu queria a mesma experiência.
Esperei pacientemente as horas passarem, e quando eram quase três da manhã, andei esbarrando nas pessoas e quando ela se levantou, esbarrei nela também, derrubando minha bebida na sua roupa. Seu hálito cheirava a álcool.
Desculpei-me pelo ocorrido do jeito mais imbecil possível.  Abaixei para pegar sua jaqueta e vi que o teaser rolou para baixo da mesa. Enquanto alguém oferecia guardanapos para ela se limpar, coloquei-o no meu bolso.
Ofereci uma carona como desculpa e ela aceitou. Entramos no meu carro e dirigi até uma estrada vazia. Encostei o carro e olhei para ela. Parecia tranquila, como se já esperasse algo do tipo. Vi sua mão procurar algo na jaqueta. Algo que estava agora na minha própria mão.
Sabe, eu venho te observando há algum tempo e devo dizer que nunca me senti tão empolgado assim antes.
Ela me olhou e pela primeira vez vi uma fragilidade verdadeira, uma expressão de medo. Eu ganhei. Encurralei minha caça.
É isso que está procurando? – mostrei o teaser.
Tivemos uma pequena disputa de força pela arma, mas ela era mais fraca, e sem eu estar bêbado ou sem o teaser, não tinha nenhuma chance real contra mim.
Acertei-a na barriga e ela desmaiou.
Levei-a para minha casa. Haveria privacidade o suficiente para eu poder lidar com a bagunça que planejei fazer.

*
Acordei amarrada em uma cadeira, amordaçada e indefesa em um cômodo escuro aleatório.
Tentei me soltar das amarras e, de repente, a luz se acendeu. Eu estava em uma garagem fechada e com um plástico enorme esticado no chão embaixo de mim. Aquilo era um péssimo sinal.
— Olá. – uma voz masculina soou e foquei em um homem encostado perto da porta. – Antes de começar, gostaria de agradecer por ter me mostrado um potencial que eu desconhecia que tinha. Claro, eu sabia que tinha vários pensamentos incomuns e sádicos, mas colocar em prática é completamente diferente!
Desespero percorreu o meu corpo. As minhas vítimas mereciam o que recebiam de mim, mas tudo o que eu fiz foi tentar melhor o mundo. Eu não mereço isso.
Observei em terror quando ele pegou um cutelo da mesa e veio na minha direção.

*
Alguns dias depois, sentado sozinho à mesa, degustando a lasanha totalmente caseira e um bom uísque, sorri satisfeito comigo mesmo. Brindei o ar e completei:
Obrigado!


segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

A loja de reparos



Um sininho tocou assim que abri a porta. O sol do final do dia invadiu a loja, a brisa fria bagunçou meu cabelo e as partículas de poeira dançaram pelo ar.
Caminhei até o balcão vazio, toquei uma campainha enferrujada e um estalido agudo ecoou no espaço apertado. Olhei em volta, não havia mais nada além de estantes vazias nas paredes.
Um senhor apareceu pela porta atrás do balcão. Cabelos brancos, olhos cansados.
- Pois não?
- Me indicaram a sua loja, – falei insegura – disseram que poderia me ajudar.
- Faz tempo que não me aparece um cliente. O que você precisa? Conserto? Trocar por um novo?
- Não... na verdade é algo muito mais difícil. Eu quero retirar.
- Esse é um procedimento muito perigoso, moça. Você ainda é muito jovem para pensar nessa opção.
- Por favor, senhor! Dizem que você é o melhor e mais experiente nisso. Eu não aguento mais viver assim. – Lágrimas brotaram dos meus olhos.
- Moça, é arriscado demais. Não tem como refazer se você se arrepender.
- Eu não me arrependerei, por favor. Eu pago o que for necessário.
- Você não quer conversar antes? Talvez desabafar um pouco, pode ajudar.
- Não. Nada mais pode me ajudar. Eu estou tão cansada – soluços acompanharam a torrente de choro.
Ele me olhou por algum tempo, me entregou uma caixa de lenços, retirada de baixo do balcão, e sumiu pela porta. Retornou alguns minutos depois segurando alguns papéis.
- Preciso que assine esses documentos. E o pagamento é adiantado.
Assinei tudo e devolvi para o senhor, assim entreguei o dinheiro.
- Você tem certeza absoluta de que quer retirar para sempre?
- Sim, por favor, retire o meu coração. Não aguento mais me magoar. Trocar e consertar não são mais suficientes. Vejo o mundo cinza e sinto o meu interior sendo devorado pelos meus sentimentos.
Ele levantou a tampa do balcão e disse:
- Então vamos começar. É por aqui.

Passei pela porta tremendo, mas aliviada por parar de sentir, de sofrer.